Seminário destaca transformações promovidas pela lei de cotas e aponta desafios

02/12/2022 - 09:51  •  Atualizado 05/12/2022 11:03
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O histórico e as perspectivas da Lei nº 12.711, popularmente conhecida como Lei de Cotas, foram assunto de debate nesta quinta-feira, 1º de dezembro, no auditório do Centro de Ciências Exatas, no campus de Goiabeiras da Ufes. Realizado pela Diretoria de Ações Afirmativas e Diversidade da Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis e Cidadania (Proaeci), o seminário 10 anos da Lei de Cotas: avanços e desafios contou com a palestra de Cleber Vieira (foto principal), professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores(as) Negros(as) na gestão 2020-2022.

Na ocasião, estiveram presentes o reitor da Ufes, Paulo Vargas; o vice-reitor, Roney Pignaton; a diretora de Ações Afirmativas e Diversidade, Ana Claudia Campos; o coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab/Ufes), Osvaldo Oliveira; e o coordenador do Centro de Estudos da Cultura Negra, Luis Carlos Oliveira.

Primeira a se pronunciar, a diretora de Ações Afirmativas e Diversidade assegurou que a Ufes tem buscado garantir a efetividade da Lei. "As cotas estão transformando a cultura da Universidade. Estudantes negros e negras trazem uma bagagem ancestral além do que institucionalmente é proposto", disse.

O primeiro Censo para Ações Afirmativas, implantado neste ano na Universidade e que está em processo de tabulação, é um dos mecanismos para a avaliação da reserva de vagas. Segundo os dados dessa pesquisa, 50,8% dos estudantes da Ufes são negros (35% pardos e 15,8% pretos). Além disso, verificou-se que, dentre os 4.442 estudantes assistidos pelo Programa Nacional de Assistência Estudantil (Pnaes), 62,8% são negros, 35% brancos e 0,2% indígenas. Os perfis de renda da maioria dos negros assistidos estão na faixa mais baixa – de 0,5 salários mínimos.

"À medida que a renda aumenta, há um embranquecimento dos assistidos. Hoje estamos implantando um novo auxílio, que vai contemplar estudantes mais vulneráveis através de identificação de marcadores sociais", disse a diretora. 

Luta antiga

O coordenador do Centro de Estudos da Cultura Negra, Luis Carlos Oliveira, lembrou que a Lei de Cotas é fruto de uma luta antiga de ativistas do movimento negro, como ele, que desde os anos 1980 se mobilizam para inserir as pautas antirracistas no debate público. "Nossas primeiras ações já tiveram foco na Ufes. A linha histórica do movimento negro é a educação. O Teatro Experimental do Negro (companhia teatral fundada por Abdias do Nascimento em 1944) já era a educação", afirmou.

Segundo o reitor da Ufes, Paulo Vargas (foto), a reserva de vagas refletiu na Universidade não só com uma mudança no perfil dos estudantes, mas uma ampliação no escopo epistêmico da Ufes. "Além de mudar sua face mais visível, inserimos no campo acadêmico questões que esses campos sociais trazem", disse. "Entre 2010 e 2019, o número de pessoas pretas e pardas no ensino superior cresceu 400 vezes, com 38,15% dos estudantes universitários, de acordo com o Censo de Educação Superior de 2020".

Para ele, o aumento no número de cotistas no ensino superior também contribui para quebrar um mito frequentemente introduzido no debate público por quem é contrário à política de cotas. "Quanto ao desempenho das universidades no Enade (Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes), em muitos casos houve um aumento da nota média da prova entre 2013 e 2019", afirmou.

Após a fala do reitor, o coordenador do Neab, Osvaldo Oliveira, citou uma série de trabalhos que estão sendo produzidos pelo núcleo com o objetivo de resgatar figuras fundamentais para a cultura negra, desde mestres tradicionais a professores, uma vez que as referências intelectuais institucionalmente estabelecidas são, em geral, brancas. "Nós somos 56% da população brasileira e 62% da população capixaba. Então, temos que ocupar esses lugares, não apenas de consumidores, mas também de produtores", disse.

Revisão

Convidado especial do evento, o professor Cleber Vieira começou sua fala chamando atenção para a falta de monitoramento da aplicação da lei no ensino superior, que é papel dos órgãos públicos, como a própria lei designa. "Não se pode revisar uma política pública sem que os órgãos responsáveis por produzir indicadores e dados o tenham feito. Nesses dez anos de Lei de Cotas, a pergunta que temos que fazer é se os órgãos, como o Ministério da Educação e a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, têm feito seu dever de casa. A resposta é um barulhento 'não'". 

Segundo ele, há também um movimento em curso no Congresso Nacional, que sequestrou a ideia de "revisão" da lei como sinônimo de vigência, isto é, que a Lei de Cotas teria prazo para terminar. "Há mais 50 projetos de lei incidindo nas mais diferentes formas na Lei de Cotas. Talvez a mais grave delas seja o projeto do deputado federal Kim Kataguiri (União Brasil), que argumenta em prol da manutenção da lei, desde que suprima-se o componente racial que destina vagas para pessoas negras", afirmou. "A interpretação mais correta dessa revisão da lei é que não existe prazo de vigência, ela tem um sentido de aprimoramento, de aperfeiçoamento".

O professor apresentou, também, alguns resultados de uma pesquisa realizada pela Defensoria Pública da União a respeito da implementação da Lei de Cotas nas universidades federais. Segundo o estudo, 20% das vagas que deveriam ser destinadas a pessoas negras não se concretizaram. "Pode-se pensar: 'Bom, mas foram 80% de eficácia'. Se a política pública era para ter contemplado todos, nenhum deveria ter ficado de fora. Nenhum negro a menos", afirmou.

Uma das perguntas do estudo era sobre a quantidade de pessoas negras que ingressam na pós-graduação. Apesar da pesquisa ter consultado 69 universidades, não houve dados a respeito. "Não há nada mais metrificado do que pós-graduação: níveis de revistas científicas, eventos, quais congressos, quantos alunos foram orientados. Entretanto, quando falamos de ações afirmativas, não existe métrica. Isso se chama racismo institucional. A lei acompanha o ritmo racista da sociedade", disse o professor.

Vieira apontou, também, a necessidade de se pensar as cotas para além da graduação. "Se a ideia de ações afirmativas for pensada de maneira radical, é preciso estabelecer metas. E nós não fizemos isso", disse. "A lei não pode ser nosso horizonte pleno e único. Temos que ampliar esse processo".

 

Texto: Leandro Reis
Fotos: Victor Thomé (bolsista de projeto de comunicação)
Edição: Thereza Marinho